Texto da Folha de São Paulo de Hoje:
Senzala debaixo do tapete
"Dormíamos no chão e, às vezes, de luz acesa, para afastar os
insetos. O banho era frio, e a roupa era lavada em baldes, sem sabão.
Café e leite cheiravam a querosene e gasolina. Crises intestinais eram
comuns entre os trabalhadores. Havia ameaças de morte."
Há uma violência latente sustentando obras públicas, empreiteiras
importantes, grandes grifes e gigantes do agronegócio. A declaração
acima é prova dessa exploração. O relato foi construído com depoimentos de homens escravizados em
empreendimento do programa federal Minha Casa, Minha Vida, em São José
do Rio Pardo (SP). O caso, infelizmente, não é isolado. Por trás da
propaganda do "novo" Brasil, há milhões de escravos.
A aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do trabalho
escravo, na Câmara Federal, permitindo confisco de terras de
escravagistas, é uma vitória. Relatórios do Ministério do Trabalho e
Emprego, dos quais a descrição acima foi retirada, comprovam, porém, que
esse crime não está apenas na zona rural, mas também nas metrópoles. Só no Estado de São Paulo, foram centenas de casos no último ano. E,
pasme, isso acontece graças à omissão de alguns parlamentares.
A Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa convocou a
marca de roupas Zara e a Racional Engenharia para dar explicações. A
primeira, sobre exploração de bolivianos; a outra, sobre condições
humilhantes de trabalho. Elas são acusadas de crimes em rincões do país?
Não. Em oficinas de costura no centro de São Paulo e em obra no
Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na avenida Paulista. Se o trabalho escravo visa ao lucro, para combatê-lo é preciso gerar prejuízo a quem o pratica.
No Senado, a aprovação da PEC pode esbarrar outra vez nos ruralistas,
que querem rever o conceito desse crime, ainda que relatório da ONU para
Formas Contemporâneas de Escravidão confirme o artigo 149 do Código
Penal: trabalho escravo é "trabalho forçado, jornada exaustiva, (...)
condições degradantes e restrição (...) da locomoção em razão de dívida
contraída com o empregador ou preposto".
Se é verdade que troncos, correntes e pelourinhos viraram história
Brasil afora, também é fato que a exploração a que remetem segue mais
viva e lucrativa em nosso país do que o mais ambicioso senhor de engenho
nunca imaginara.
Não há nada de inocente no atraso de tantas votações importantes.
Sinceramente, quem tem medo do combate ao trabalho escravo na certa
também lucra com essa violência.
CARLOS BEZERRA JR., 44, médico, é deputado estadual, líder do
PSDB na Assembleia Legislativa de SP e vice-presidente da Comissão de
Direitos Humanos
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